MARIA BETHÂNIA – 60 ANOS DE CARREIRA
Maria Bethânia completa 60 anos de carreira e anuncia apresentações comemorativas. Apresentados por Elo, os shows estreiam no Rio de Janeiro, nos dias 06, 07, 13, 14, 20 e 21 de setembro, no Vivo Rio.
SEIS DÉCADAS DA VOZ DE UM PAÍS – por Leonardo Lichote
Maria Bethânia celebra 60 anos de carreira em show que trará inéditas em meio a clássicos — e cujas principais referências são espetáculos como ‘Rosa dos ventos’ (1971) e ‘A cena muda’ (1974)
Maria Bethânia lembra — “perfeitamente”, como me contou em entrevista em 2021 — de sua estreia no espetáculo “Opinião”, em fevereiro de 1965. A amiga Thereza Aragão a recebendo e a encaminhando para o camarim modesto do Teatro Opinião, de luz âmbar, com um espelho quadrado na parede. Sua calma contrastando com o nervosismo de seu irmão Caetano Veloso. Sua insatisfação com o penteado que lhe fizeram — e a afirmação da personalidade forte se mostrando já ali, quando ela decidiu, minutos antes de entrar no palco, prender o cabelo no coque que virou uma marca sua naquele primeiro momento da carreira. A felicidade com que entrou no palco, descalça, para cantar “É de manhã”. A aclamação de “Carcará” naquele Brasil que há quase um ano vivia uma ditadura militar.
Era a primeira vez que Bethânia se apresentava num palco fora da Bahia, onde já começava a se mostrar como cantora em shows coletivos que reuniam jovens artistas locais como Caetano, Gil, Gal e Tom Zé. Em passagem por Salvador, Nara Leão a ouviu cantar e, pouco tempo depois, a indicou para substituí-la no “Opinião”, abrindo espaço para a estreia nacional da baiana.
Agora, seis décadas depois, a cantora prepara um show em celebração à caminhada iniciada ali, naquele pequeno teatro de Copacabana. Uma trajetória que cravou seu lugar na história da música de nosso país — e, ainda mais importante, no coração de milhões de brasileiros que foram tocados pelo calor cortante de sua voz, que conjuga aspereza e doçura, dengo e contundência, drama e mel, mares e oásis. Como afirmou em 1972, nos versos de Chico Buarque que tomou para si como faz com tudo que seu canto toca:
Quando eu canto, que se cuide quem não for meu irmão. O meu canto, punhalada, não conhece o perdão;Quando eu rio, rio seco como é seco o sertão. Meu sorriso é uma fenda escavada no chão; Quando eu choro é uma enchente surpreendendo o verão. É o inverno, de repente, inundando o sertão; Quando eu amo, eu devoro todo meu coração. Eu odeio, eu adoro, numa mesma oração;
A marca de sua intensidade — tornada meme pela frase “Toca Maria Bethânia pra ela, mostra que tu é intenso”, dita por Sônia Braga no filme “Aquarius” — se mostrava já nos primeiros passos da carreira. Quando boa parte dos artistas de sua geração próximos a ela estava em diálogo direto com a bossa nova, fosse reafirmando a gramática de contida sofisticação musical do gênero, fosse buscando dar um passo seguinte como a turma da Tropicália, Bethânia foi na direção das cores fortes e amores derramados do samba-canção — e de outras pérolas antigas pouco lembradas então. Marcava assim sua identidade única — assim como afirmava distância da combatividade politizada e sertaneja de “Carcará”, lugar na qual público e crítica tentaram congelá-la.
“Voltei cantora da noite, meio cafona, com música que ninguém cantava, de um repertório romântico mais brega, de que eu sempre gostei”, lembrou em entrevista a mim em 2015. “Não era nem Tropicália nem bossa nova. Ambos lindíssimos, e eu passeei bem nos dois. Mas do meu jeitinho, sem me aprisionar”. Esse momento inicial aparece bem representado no álbum “Recital na Boite Barroco”, de 1968.
A religiosidade — outra marca da música de Bethânia, filha de Oyá, iniciada por Mãe Menininha do Gantois — começa a se mostrar de maneira definida a partir de 1969, quando ela grava “Ponto do guerreiro branco”. Ela seguiria gravando nos anos seguintes pontos tradicionais e canções de inspiração religiosa, como “As ayabas” e “Iansã”, ambas parcerias de Caetano e Gil. Em “Oásis de Bethânia”, disco de 2012, ela apresentou “Carta de amor”, na qual, em raros versos próprios (entremeados com refrãos de Paulo César Pinheiro), ela lista de maneira desafiadora as entidades que a acompanham: santos, orixás, espíritos indígenas, diferentes materializações das ancestralidades do Brasil.
Sobretudo por sua força no palco, Bethânia se tornou, ela própria, uma dessas presenças míticas que definem o espírito do Brasil. Evidente desde aquela primeira aparição no Teatro Opinião, sua potência em cena só se consolidou com o tempo. Em especial, a partir dos espetáculos realizados em parceria com o diretor Fauzi Arap, com quem ela desenvolveu uma linguagem que se tornou a partir dali uma assinatura, um jeito Bethânia de estar no tablado: roteiro cruzando textos e canções, dando um senso teatral que explora ao máximo a dramaticidade da cantora.
O primeiro show que Bethânia e Fauzi fizeram juntos foi “Comigo me desavim”, de 1967 — apontado pela crítica como um dos melhores espetáculos do ano. Mas a linguagem da dupla se consolida na década de 1970, em shows como “Rosa dos ventos” (1971), “A cena muda” (1974) e “Pássaro da manhã” (1977). Depois, a parceria seguiu dando frutos: “Maria” (1988), “Âmbar” (1996), “Maricotinha” (2001), entre outros.
No show comemorativo dos 60 anos de carreira, a cantora irá explorar exatamente a interseção entre a linguagem musical e a dramaturgia, ou seja, entre textos e canções — incluindo inéditas que ainda serão reveladas. As referências para o novo espetáculo são “Rosa dos ventos” e “A cena muda”, ambos desse período dos anos 1970. Ou seja, a Bethânia mais profundamente Bethânia.
Gal e Bethânia estiveram juntas dois anos antes, ao lado ainda de Caetano e Gil, no supergrupo Doces Bárbaros. O quarteto se reuniu para uma turnê registrada num álbum duplo e num documentário de Jom Tob Azulay. É desse encontro sua primeira gravação de “Um índio”, que Caetano fez para que ela cantasse. Outros encontros da época que entraram para a história — em shows e discos — foram “Chico Buarque & Maria Bethânia”, em 1975, e “Maria Bethânia e Caetano Veloso”, em 1978.
Nos anos seguintes, Bethânia seguiu lançando discos marcantes de sua carreira. “Mel”, de 1979, trazia clássicos como a canção-título (de Waly Salomão e Caetano), “Cheiro de amor” (Paulo Sérgio
Valle, Jota Morais, Ribeiro e Duda Mendonça) e “Da cor brasileira” (Ana Terra e Joyce Moreno). “Dezembros”, de 1986, tem sucessos como “Anos dourados” (Tom Jobim e Chico Buarque) e “Gostoso demais” (Dominguinhos e Nando Cordel). Em “Memória da pele”, de 1989, além da música que dá nome ao disco (parceria de João Bosco e Waly Salomão), está “Reconvexo”, outra que seu irmão compôs pra ela e se tornou uma de suas assinaturas.
A partir de “Olho d’água” (1992) e, mais marcadamente, de “A força que nunca seca” (1999), Bethânia se lança num mapeamento afetivo do Brasil interiorano, que se tornou um pilar de sua obra desde então — com tradução sonora quase sempre do maestro Jaime Alem, seu parceiro musical por quase 30 anos, até o início dos anos 2010. O exemplo mais bem acabado dessa proposta se dá em “Brasileirinho”, disco antológico que gerou um espetáculo igualmente histórico. Ali, e em praticamente todos os seus álbuns desde então, a cantora desenha um país que captura com seu olhar e que se materializa em seu canto. Um sonho real de Brasil, fincado no chão de terra, e que se afirma mesmo em meio às trevas, como em “Noturno”, disco de 2021.
Esse país se insinua mesmo em projetos de conceitos bem definidos, como “Pirata” e “Mar de Sofia” — discos irmãos de 2006 dedicados às águas. Ou “Que falta você me faz”, de 2007, uma declaração de amor a Vinicius de Moraes. Ou ainda no projeto em dupla com Zeca Pagodinho (“De Santo Amaro a Xerém”, de 2018). A Mangueira — onde o Rio é mais baiano e onde Bethânia se sagrou campeã do carnaval em 2016 como homenageada do enredo “A menina dos olhos de Oyá” — encarna esse Brasil de maneira nítida em “Mangueira — a menina dos meus olhos”, disco de 2019.
Celebrada no carnaval da verde-e-rosa, em documentários como “Música é perfume” (Georges Gachot em 2005) e “Fevereiros” (Marcio Debellian, 2017) e pelos milhões de fãs que foram as arenas assistir à recém-encerrada turnê que ela fez ao lado de Caetano, Bethânia seguirá traçando, no novo show, as linhas desse Brasil que a alimenta e que ela alimenta. Afinal, carrega com ela, como certeza, um verso da primeira canção que entoou no espetáculo “Opinião”, há 60 anos: “A barra do dia vem”.